Hosana concordara com a idéia de
Francisquim de deixar Pernalonga vender maconha para alguns de seus conhecidos,
desde que o negócio não incluísse dolinhas. Deveria vender apenas peso. À Pernalonga
pareceu ótima a oportunidade de voltar aos negócios, menos bandeiroso, podendo
se dar ao luxo de descartar a lida com moleques abusados que batiam na sua
porta às três da manhã, inconvenientes, ligando para o seu celular e falando
abertamente quantidade e valor.
Tinha de ser muito cuidadoso, agora.
Pra começar, saber onde diabos iria esconder dois quilos de maconha hidropônica
sem que a polícia ou gente como Francisquim (embora este fizesse apenas pela
diversão) não invadissem seu quintal enquanto ele não estivesse e roubassem
toda a droga.
Agora mesmo, Francisciquim estava
metido dentro da casa do amigo, curioso de ouvir mais uma mensagem de voz no
celular
Que
mentira que é você. Que engodo. Solto o ódio só pra te detonar, que não sou
nada disso. Sou melhor que você. Essa pose e nariz empinado. Como se não
precisasse de ninguém. Vai lá. Babaca! Vai lá pra essa vida louca ridícula que
você tanto quer. Vai lá, seu babaca. Vai se foder!
e notando num
canto, perto da mesa coberta por contas vencidas, copos sujos e diferentes
cinzeiros cheios de bingas, uma cama improvisada, sem colchão, apenas duas
colchas e um travesseiro, embolados, certamente usados. O problema era por
quem. Um cachorro estaria muito bem servido se passasse à noite embolado em tais
trapos. Um homem mal e mal conseguiria se cobrir.
Chiquim deu dois passos e conferiu o
quarto, único outro cômodo da casa de Pernalonga, já que o banheiro ficava do
lado de fora, alguns metros para dentro do quintal – uma diversão para os
moleques com quinze anos que queriam pregar sustos uns nos outros, um tormento
para homens com mais de trinta tentando chegar ao banheiro no frio da madrugada
antes que as bexigas estourassem. Cheio de poeira, o cômodo revistado não era
muito diferente do quarto de muitos dos amigos de Francisquim – embora alguns,
como o padre, tivessem quartos melhores que outros. O único diferencial no
quarto de Pernalonga, além dos pôsteres de mulher pelada espalhados pelas
paredes, era o microondas na cabeça da cama.
Para Francisquim, o problema da
maconha de Hosana era a enorme lombração que deixava após ser fumada. Os
passos, atos, pensamentos todos passavam a fazer parte de um excelso veio de
prata brilhando para fora da existência, um ponto fulgurante no silêncio do
espaço, na linguagem sinestésica que fazia sentido a Pernalonga. Francisquim
despassou-se até o lado de fora da casa, sem tirar olhos do celular e da tomada
e da luz acesa e correu olhos na geladeira e colou-se no silêncio pra ter
certeza de que ouvia o barulho do motor. E ouvia.
Saiu da casa, Pernalonga nem
notando, Chiquim de olho na fiação, Pernalonga ainda naquela de lamentar a
árvore cortada, Chiquim sacando agora tudo, falou:
- Cara.
- Fala.
- Sua geladeira não tá congelada. A
água tava estragada, mas não tinha gelo no congelador.
- O que tem isso?
- E seu celular devia ter explodido.
- Devia?
- Devia. Ligado tanto tempo. Queima.
Kaput, mermão! Mas não aconteceu.
- Sorte minha, não é?
- É, sorte. Mas isso aí, pra mim,
tem outro nome.
Francisquim apontou para o alto, o
amarfanhado de fios que se embolavam num canto do lado de fora da casa de
Pernalonga, e que iam culminar num único fio, branco, de extensão, esticado
pela jabuticabeira, através do quintal, até a casa do tio morto.
- Isso se chama gato -, falou
Francisquim: - Seu tio fez um gato de luz pra você.
Ainda era primavera, mas a quentura
da noite parecia verão. No morro à frente, um mar de vaga-lumes tomava o campo
de visão num frenético piscar. Próximo à casa de Pernalonga, cigarras
torpedeavam a noite com seu cantar. E lá embaixo um caminhão desgovernado batia
no carro de Francisquim, acordando a vizinhança.
Nenhum comentário:
Postar um comentário