terça-feira, 8 de abril de 2014

Seqüência 2.2 – A recepção



            Mão esquerda no bolso (secretamente contando moedas), Pernalonga nem notou a entrada de Francisquim, que molecamente estapeou o balcão, pedindo uma soda. “Não tou bebendo mais, falou o sapo”, falou Francisquim, que notou nosso herói estacionado no fundo do bar, rente ao balcão, mão no bolso, contando moedas.
            “Olha quem tá aqui”, ameaçalhou Francisquim de brotar em cima de Pernalonga na forma de um abraço.
            “Nem vem que não tem”, interrompeu Pernalonga o movimento do outro, dando-lhe a mão em cumprimento.
            “Que me conta, hermano?”
            - Quero saber quem foi que pegou meu bagulho.
            - Ah, então o assunto é sério. Sem tempo pra gente enrolar com os como vais? e quais as novidades?, partimos direto pro assunto todo. – Falou Francisquim, puxando cadeira e se sentando do lado de Pernalonga. No abuso, catou um palito e beliscou um queijo do prato. – Sirvo-me, está bem?
            - Fique servido -, disse o outro.
            - Sim, sim, sim. Você está bem simpático, sabe?
            - Você acha?
            - Acho. Tá mais bem humorado que o costume.
            - Eu preciso de dinheiro. Mas não quero trabalho. Me empresta algum.
            - Ô, Pernalonga! Esse papo não devia ser mais comprido, não? Você tem que me seduzir, cara. Contar sua história trágica, me sensibilizar. Aí eu te arrumo o dinheiro. Se der.
            - Você quer uma tragédia?
            A moça se aproxima, pega a garrafa, balançando, avaliando o peso, e pergunta aos dois querem outra. Pernalonga se fecha em copas. Francisquim responde no lugar do outro: - Não, meu bem. Na verdade... – e faz o costumeiro gesto de quem anota na palma da mão, pedindo a conta.
            - Então -, diz Pernalonga, assim que a moça vira as costas -, seria uma boa que você me arrumasse o dinheiro. Ou tivesse saco pra ouvir a tragédia da minha vida. Quem sabe, me descolar alguma coisa. Faz um tempo que eu não fumo...
            - Tá, como se fosse mais difícil descolar lá dentro que aqui fora.
            - Que seja. Você podia, ao menos, me convidar pra comer na sua casa. Meu dinheiro acabou com esse lanche.
            - E bebeu sua grana toda pra que? Comemorar sua liberdade? Ou tá feliz que seu tio bateu as botas?
            O espanto de Pernalonga é interrompido pela chegada da moça, que traz a conta. Atrapalhado pela súbita timidez provocada pela presença da moça, o homem mal consegue esboçar uma palavra, enquanto sofre arrancando as moedas do bolso. O barulho provocado pelo choque entre elas quase o afoga na vergonha. Para aumentar o rubor, sua mão repleta de notas ensebadas e moedas enferrujadas é interrompida por Francisquim que, sacando uma onça novinha, diz: - Pode deixar. Dessa vez é por minha conta. Comemorando a volta do amigo, moça.
            Enquanto ele fala, ela vai até o caixa, fazendo os cálculos mentalmente, sem esforço, pega o troco e traz de volta, a tempo de Francisquim se completar: - Meu amigo foi ao inferno, meu bem. Agora ele precisa se refrescar com a fumaça do mundo real, se é que você me entende.
            Ela passa o troco à Francisquim, que tira uma parte do dinheiro para si e deposita o resto no bolso da camisa de Pernalonga. “Pelo que eu colhi das árvores no seu quintal”, diz, enquanto puxa o outro para fora do bar.
            Não há despedidas. Pernalonga é só conferir o chão enquanto a idéia de seu tio morto lhe passa pela cabeça, enquanto Francisquim o puxa pra fora e a moça caminha para outro lado do balcão, para continuar na andança insana de balcão pra freezer, servindo um bando de pessoas com rostos iguais, todos deformados pelo sol e pela cachaça – aquela carranca que se apossava de todos ali. No mesmo instante que a moça limpava o balcão no ponto onde os dois estavam, Perna e Chiquim ganhavam as ruas, o primeiro ainda perdido de amor e embasbaques, que agora imaginar o mundo sem o tio era estranho, novo, assustador...
            - Livre! – Francisquim bateu no ombro de Pernalonga, ainda sem abraçar, sabendo dos limites impostos pelo outro. – Você tá livre, filho da puta! Vai ficar aí com cara de cu por conta de que?
            - Meu tio morreu. Você falou que ele morreu. Quando...?
            - Ontem. Tão enterrando agora, eu acho. Você queria...?
            Agora foi a vez de Pernalonga puxar Chiquim pelo braço: - Tá com o carro?
            - Tô, mas...
            - Então me leva lá pra cima, agora. Me leva no cemitério.
            - Ah, caramba. Eu já te dei dinheiro, Perna. Porra. Paguei sua conta e te dei dinheiro. Agora vou ter que te levar num cemitério? Se vira, maluco. Pega um táxi. Só não me enche o saco. Ai, caceta! Já falei pra tirar a mão de mim. Tira a mão de mim! Tá! Tá bom. Merda. Eu te levo. Tali o carro. Entra. Vamos.

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