Mão esquerda no bolso (secretamente
contando moedas), Pernalonga nem notou a entrada de Francisquim, que
molecamente estapeou o balcão, pedindo uma soda. “Não tou bebendo mais, falou o
sapo”, falou Francisquim, que notou nosso herói estacionado no fundo do bar, rente
ao balcão, mão no bolso, contando moedas.
“Olha quem tá aqui”, ameaçalhou
Francisquim de brotar em cima de Pernalonga na forma de um abraço.
“Nem vem que não tem”, interrompeu
Pernalonga o movimento do outro, dando-lhe a mão em cumprimento.
“Que me conta, hermano?”
- Quero saber quem foi que pegou meu
bagulho.
- Ah, então o assunto é sério. Sem
tempo pra gente enrolar com os como vais? e quais as novidades?, partimos
direto pro assunto todo. – Falou Francisquim, puxando cadeira e se sentando do
lado de Pernalonga. No abuso, catou um palito e beliscou um queijo do prato. –
Sirvo-me, está bem?
- Fique servido -, disse o outro.
- Sim, sim, sim. Você está bem
simpático, sabe?
- Você acha?
- Acho. Tá mais bem humorado que o
costume.
- Eu preciso de dinheiro. Mas não
quero trabalho. Me empresta algum.
- Ô, Pernalonga! Esse papo não devia
ser mais comprido, não? Você tem que me seduzir, cara. Contar sua história
trágica, me sensibilizar. Aí eu te arrumo o dinheiro. Se der.
- Você quer uma tragédia?
A moça se aproxima, pega a garrafa,
balançando, avaliando o peso, e pergunta aos dois querem outra. Pernalonga se
fecha em copas.
Francisquim responde no lugar do outro: - Não, meu bem. Na
verdade... – e faz o costumeiro gesto de quem anota na palma da mão, pedindo a
conta.
- Então -, diz Pernalonga, assim que
a moça vira as costas -, seria uma boa que você me arrumasse o dinheiro. Ou
tivesse saco pra ouvir a tragédia da minha vida. Quem sabe, me descolar alguma
coisa. Faz um tempo que eu não fumo...
- Tá, como se fosse mais difícil
descolar lá dentro que aqui fora.
- Que seja. Você podia, ao menos, me
convidar pra comer na sua casa. Meu dinheiro acabou com esse lanche.
- E bebeu sua grana toda pra que?
Comemorar sua liberdade? Ou tá feliz que seu tio bateu as botas?
O espanto de Pernalonga é
interrompido pela chegada da moça, que traz a conta. Atrapalhado pela súbita
timidez provocada pela presença da moça, o homem mal consegue esboçar uma
palavra, enquanto sofre arrancando as moedas do bolso. O barulho provocado pelo
choque entre elas quase o afoga na vergonha. Para aumentar o rubor, sua mão
repleta de notas ensebadas e moedas enferrujadas é interrompida por Francisquim
que, sacando uma onça novinha, diz: - Pode deixar. Dessa vez é por minha conta.
Comemorando a volta do amigo, moça.
Enquanto ele fala, ela vai até o
caixa, fazendo os cálculos mentalmente, sem esforço, pega o troco e traz de
volta, a tempo de Francisquim se completar: - Meu amigo foi ao inferno, meu
bem. Agora ele precisa se refrescar com a fumaça do mundo real, se é que você
me entende.
Ela passa o troco à Francisquim, que
tira uma parte do dinheiro para si e deposita o resto no bolso da camisa de
Pernalonga. “Pelo que eu colhi das árvores no seu quintal”, diz, enquanto puxa
o outro para fora do bar.
Não há despedidas. Pernalonga é só
conferir o chão enquanto a idéia de seu tio morto lhe passa pela cabeça,
enquanto Francisquim o puxa pra fora e a moça caminha para outro lado do
balcão, para continuar na andança insana de balcão pra freezer, servindo um
bando de pessoas com rostos iguais, todos deformados pelo sol e pela cachaça –
aquela carranca que se apossava de todos ali. No mesmo instante que a moça
limpava o balcão no ponto onde os dois estavam, Perna e Chiquim ganhavam as
ruas, o primeiro ainda perdido de amor e embasbaques, que agora imaginar o
mundo sem o tio era estranho, novo, assustador...
- Livre! – Francisquim bateu no
ombro de Pernalonga, ainda sem abraçar, sabendo dos limites impostos pelo
outro. – Você tá livre, filho da puta! Vai ficar aí com cara de cu por conta de
que?
- Meu tio morreu. Você falou que ele
morreu. Quando...?
- Ontem. Tão enterrando agora, eu
acho. Você queria...?
Agora foi a vez de Pernalonga puxar
Chiquim pelo braço: - Tá com o carro?
- Tô, mas...
- Então me leva lá pra cima, agora.
Me leva no cemitério.
- Ah, caramba. Eu já te dei
dinheiro, Perna. Porra. Paguei sua conta e te dei dinheiro. Agora vou ter que
te levar num cemitério? Se vira, maluco. Pega um táxi. Só não me enche o saco.
Ai, caceta! Já falei pra tirar a mão de mim. Tira a mão de mim! Tá! Tá bom.
Merda. Eu te levo. Tali o carro. Entra. Vamos.
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