segunda-feira, 21 de abril de 2014

Seqüência 9 - Onde homens enforcados discutem seus destinos



Pernalonga se sentou em uma das longas poltronas da sala, arrumada como se constantemente esperasse que uma festa acontecesse por ali.
- Não sejamos tímidos -, disse o padre, sacando da caixa dois baseados prontos, iguaizinhos ao dele, entregando-os a Francisquim e Pernalonga -, o melhor é que todos fumem e rezem por sua própria conta. Só o máximo para Jesus!
- E o nirvana. – Emendou Chiquim.
- Ô, Buda, não. Olha o respeito que essa casa é de uma fé só. – Falou, com seriedade, o padre Hosana, para em seguida abrir um sorriso: - A propósito, estava eu aqui, a cuidar da minha vida, orando para o meu Senhor, e sou interrompido em todas as minhas obrigações eclesiásticas por dois tipos malandros e sem fé como vocês. A que se deve a sua visita, Francisquinho?
- Padre – disse Chiquim -, este jovem que me acompanha precisa de palavras sábias. Precisa do conhecimento e da experiência que só um homem como você pode dar.
- Que experiência, Chico? Ele é padre. E virgem. E não tem nem cinco anos a mais que eu. – Falou Pernalonga para o amigo. E, na emenda, olhou para Hosana: - Sem querer ofender, é claro.
- Da experiência, do fato de eu ser abençoado e poder dar graças, e até da minha idade, você está muito certo, meu querido. Mas esses são beneméritos que podem ser atribuídos a qualquer um. O que me incomoda é você questionar minha vida sexual. Vindo de um homem que andava a colocar o pau dentro do forno microondas durante a adolescência, nada poderia ser mais ofensivo para mim. – Falou Hosana, levantando-se e disparando toda a fumaça presa em seus pulmões contra o vidro da janela.
Pernalonga acompanhou o espatifar da fumaça sobre o vidro iluminado e parcialmente esverdeado pela mata lá fora. Sabia, em seu íntimo, que o outro não falava a sério, embora estivesse ciente de que, da forma como tinha encerrado o discurso, Hosana bem poderia ter lhe ofendido. Por sorte estava calejado das piadinhas.
- Ai de nós!, Pensadores! (Maiusculizo as palavras, ridicularizo com a História e sobriamente dedico um nobre eflúvio as convenções da Palavra.), a que Pecados nos entregamos? O pecado do Sabor, Senhor. Que espécie de intruso se engana que o Reino dos Céus é tomado de Sabor? Um intruso no Céu, Senhor. Tenho um Amém?
- Amém, responderam em coro, Pernalonga e Francisquim em resposta ao apelo de Hosana.
- Amém!, o melhor som que existe, digo eu, calejado já de ouvir se repetir em ecos o Amém e os Aleluias diversos de uma Vida Dedicada ao Santificar de Meus Passos. Exagero? Nem Tanto. Minha Profissão é a de Mitificar tudo que Vejo. Sacerdote-Xamã-Louco-Ermitão. Muito Prazer, Senhor.
- Expie os seus pecados, Toelho Maluco! – Falou Francisquim, dando continuidade ao tom debochado de Hosana.
- Acho que não tenho nenhum pecado além dos registrados na minha folha corrida. O resto foram erros, falhas, pesos e passados. – disse Pernalonga.
- Vê, padre? Este homem está distante do caminho da salvação. – falou Chiquim à Hosana, que se aproximou de Pernalonga, baseado entre os dentes, pegando-o pelos ombros, alçando-o a sua própria altura, como quem respira bufando, soltou a fumaça bem na sua cara.
- Isto não é batismo, que não sou João. Isto é farra, que sou Hosana.
- Pensei que hosana fosse louvor.
- Dá no mesmo. Festa no céu. Vem, Pernalonga, seu maldito cartoon demente e aproveitador. Vem conhecer as catacumbas, o ossuário protegido, que afinal tenho esse nome roubado do Quarup, e mamãe bem sabia o peso dos nomes, bem sabia que eu teria um segredo para proteger. Hosana tem segredos e pecados. Mas se não podemos falar dos pecados de vosmicê, Perna, ao menos falemos dos segredos que eu carrego. Que, afinal, o Chiquinho não te trouxe por acaso.
- Como assim? – perguntou Pernalonga.
- We're gonna make you an offer you can´t refuse. – disse Francisquim.
- Que que é isso? Você agora vai tirar o dia pra citar O Poderoso Chefão pra mim?
- Viu só que bicha que ele é, padre? Sempre assim, esquentadinho. Tá com saudade de levar na bunda na cadeia...
- Ninguém me comeu, Chico. Larga dessa merda.
- É, Francisquinho, larga de merda. Ninguém ia comer essa bunda magrela e ossuda, mesmo. Agora, acalmem os ânimos as duas senhoras, e acompanhem-me. Temos coisas a conversar.

Pernalonga seguiu Hosana e Francisquim, que já era habituado ao caminho, por dentro da mata, até chegar numa estufa cercada de pinheiros e bananeiras. Com tetos de vidro e paredes feitas de longas tábuas de compensado rosa-choque, a estufa que mais parecia uma casinha de tralhas guardava em seu interior uma plantação responsável por colocar mais de sete quilos de maconha nas ruas a cada dois meses. Uma produção engenhosa e cara, bancada pela Igreja através das mãos hábeis de Hosana Conselheiro.
O pouco ortodoxo “padreco”, como era chamado por alguns amigos mais antigos, era responsável por oferecer por baixo dos panos a erva do clero. Da primeira vez que visitara Hosana, Pernalonga se encantara com a idéia de padres conduzindo missas chapados daquela mesma maconha que ele estava fumando. Tudo em nome da fé, claro.
- Então, qual é a proposta? – perguntou Pernalonga, pondo fim a um silêncio que dominara a cena desde que saíram da casa de Hosana, ainda fumando os três.
- Cruel, não é? Este camarada é curto e grosso, padre. Na linha, pode falar logo, que ele vai entender. Eu sempre te digo isso. Pernalonga é na linha.
- Sou de linha arrebentada, Chico. Desses equilibristas ruins que se espatifam no meio da rua.
- Ah, é nada. Só está rabugento. E apaixonado. Te falei isso, Hosana? O Pernalonga está apaixonado. Tá todo tristonhoinho e com o coração a mil por conta de um rabo de saia. Olha que beleza a juventude do sentimento!
- Ah, então é amor que esconde essa carranca macambúzia! – atestou Hosana ao comentário de Francisquim, anunciando em voz alta a própria compreensão, enfim, do tormento visível na face de Pernalonga. – E que te falta para a felicidade ao lado da sua beleza amada, meu filho?
- Falar com ela, padre. Falta que ele abra a boca.
- Ah, sim. Compreendo. Falar é bom. Se quieto, o amor é morto.
- Eu não estou apaixonado – falou Pernalonga -, eu mal vi a mulher. Apenas achei-a bonita. Nada mais. Que coisa! – disse na direção de Chico: - O que vocês querem, afinal?
- Ainda não deu pra adivinhar, Perna? – falou o padre em meio a um gesto de mesura com as mãos, exibindo, com o acender das luzes, o verde mar de folhas que tomavam o interior da estufa.

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