e como cada linha me desmoralizava mais e
mais. Como se eu fosse continuamente atingido— Não. Como se eu enxergasse entre
elas. Entre as linhas, sabe? Eu podia ver monstros. Eles se formavam nos
espaços em branco das páginas, como aranhas, criaturas vis, crescendo através
das linhas. O branco das páginas me assustava. Eram os meus monstros esses espaços,
this blank. E finalmente eu não pude
mais escrever. Eu não sei o que era. Eu posso te falar aqui de tudo, cara.
Posso te contar cada detalhe sórdido, posso tentar me expressar, dizendo o
tanto de mal que já fiz, o tanto que queimei... Só pra escrever. O caso é que escrever é um hábito nocivo. Como diabos farei para te explicar?
Antonio Izabel - Você pediu para gravar. Eu preferia que você me escrevesse as
respostas, mandasse pelo correio...
Pedro Conselheiro – O caso é que eu não posso mais, camará. Eu
não posso fazer isso. Escrever é doloroso...
Antonio Izabel – Mas necessário. Você mesmo já me disse que não sabe de outra forma para
viver.
Pedro Conselheiro – É. Bem a minha cara ter dito essa merda. Mas
olha só que besteira. Estou transformando essa crise em um clichê patético. Não
sou como Sábato, impossibilitado de escrever por motivos médicos, se abraçando
a outra forma de expressão para seguir vivendo. Eu quero parar. Isto está me
matando, mas não é de uma secura poética que falo, eu não estou amedrontado
pelas letras, não exijo desta dimensão elevada de onde arranco as histórias que
me forneçam uma salvação a qual não acredito ter direito – o que faço é me
afogar pela vida, nas garrafas, me afastando das pessoas, buscando uma coisa
que não posso nomear, do único jeito que o mundo moderno permite que sejamos:
amargos, doloridos, insuficientes. E eu acho isso chato pra caralho. Tanto que
vou mudar tudo. Vou viver do jeito sorridente dos normais. Vou me secar,
Antonio Izabel, vou me jogar do alto daquele prédio lá da minha historinha, só
que não vou pra cima, vou pra baixo, que também existe, segundo o Huxley, um
pouco de transcendência na queda. Outro dia vi um filme em que a mocinha diz
assim no final: que é ótimo rir de quem está perdendo. Que ganhar é muito
fácil. Perder é que é difícil. Entende isso?
Antonio Izabel – Então você está desistindo de escrever. Só que ao invés de seguir a
rotina normal dos artistas malditos, você vai optar por uma vida normal, um
mundo colorido, com mulher, filhos, empregado no bate-cartão, carro de segunda
mão e um copo de pinga no final do dia? Ué, meu amigo, não sou eu que vou dizer
nunca ter sonhado em fazer o mesmo. O que me incomoda são seus monstros. Você
criou um considerável universo mitológico. Complexo. Um Olimpo recheado com
tipos esquisitos que algumas pessoas e grupos crêem se tratar de entidades
reais. Como eles surgiram, de onde vêm? Fale mais sobre os monstros.
Pedro Conselheiro – Ora, caralho. Eles vêm de mim. E há esses outros, esses que estão perdidos e vem até mim. Pegue um livro, observe os
espaços em branco entre as linhas, palavras e até letras. É esse vazio
assustador, Antonio. Eu sinto por trás dos meus olhos, cutucando, arranhando,
como uma fera pedindo para sair. Meu vazio e minha solidão. Meus monstros e
demônios. E eu não posso matá-los. Mas também não posso mais alimentá-los.
Nenhum comentário:
Postar um comentário